Saga da alma em terra minada

A 4ª edição da mostra Mundo Árabe de Cinema, que o Instituto da Cultura Árabe realiza este ano em parceria com a Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, o CineSesc e a Casa Árabe de Madri-Espanha, espelha importantes vertentes do cinema em países como a Tunísia, o Egito, o Líbano e o Iraque. Em boa parte, as produções concernem a mais de um país, unindo esforços conjuntos de países árabes e europeus, como a Alemanha e a França, além dos EUA e do Irã, em retrato ora da situação dos artistas, protagonistas eles mesmos da diáspora árabe que marca os séculos XX e XXI, ora das condições de produção do cinema em geral, cada vez mais aberto ao concurso binacional. Por essas razões, os filmes que compõem essa 4ª Mostra são um testemunho sucinto, mas fidedigno da sobrevida da sétima arte no mundo árabe de hoje.

Cena de Ahlaam

A guerra, como não poderia deixar de ser, é de longe o tema que ocupa o horizonte do último cinema árabe. As invasões ao Iraque e ao sul do Líbano, no entanto, se são motivos para o impulso criador, não são necessariamente a matéria única desses filmes. O diretor e sua equipe, o produtor e seus assistentes, a câmera e as personagens, o editor que aviva os rolos de fita, todos perseguem não só o colapso da vida e da matéria, acarretado pela guerra bruta, mas sobretudo a capacidade de regeneração dessa mesma vida e dessa mesma matéria. Em meio ao cenário de destruição no Iraque e no Líbano, sobreleva-se a absurda persistência do que renasce, como a gramínea que brota entre a fenda do concreto. Um desafio que o espectador não cansará de ver nesses filmes, onde “a pedra chora”, “uma criança tem a alma antiga”, e uma noiva mentalmente dilacerada, como em Ahlaam, encontra no vazio das ruas fumegantes de Bagdá o tanque cheio da agrura... e o enche com sua existência vã de ser insano perdido em meio ao caos dos homens sãos, a louca em meio à sanidade pretensa e toda cheia de armas, fedendo a enxofre das bombas. Nesses filmes, crianças não morrem porque morrem, mas porque, adultos precoces, têm morta a infância e ainda consolam seus maiores, em inversão acachapante das relações naturais no seio das famílias. E, nisso, elas dão chance para a vida refazer-se.

Outro eixo temático da 4ª Mostra é a espiritualidade no terreno marco da existência: os desertos. Se, no bloco de filmes que retratam a guerra, a aridez da destruição impacta os sobreviventes e as lentes do cineasta, nos filmes que compõem a premiada trilogia do deserto, do tunisiano Nacer Khemir, a espiritualidade é buscada nos limites sem fim nas distensões das areias e nas alturas dos céus. Tal filmografia inova no tratamento dos temas do sufismo ao explorar de maneira fresca a relação mestre-discípulo, dispondo ao lado do velho uma menina criança. Inova também por incluir o feminino na busca da sabedoria e da união com o divino, descerrando a cortina do machismo herdado dos últimos séculos. Enquanto narrativa, o filme Baba Aziz, que abre a mostra, recupera mecanismos narrativos característicos das Mil e uma noites, mas o faz sutilmente, sem ser o fio condutor do filme. Esse fio condutor é o velho, que ao final das contas será o mesmo príncipe que abdicou da vida das cortes e, à moda de Sidarta, o buda, trilha o caminho do conhecimento, agora porém da perspectiva da mística islâmica. O filme explora a magia dos cenários do deserto a cavalo de uma câmera que é, ela mesma, um narrador silencioso. Lembra o cinema de Pasolini e dos irmãos Taviani. A captação do deserto é, por sua vez, primorosa, revezando em claro e escuro total o dia e a noite nas dunas, concebendo céu e terra em praticamente uma mesma cor, o que é, por sua vez, metáfora da união mística do homem com Deus. A alma, o grande tema desses filmes, não é nunca apagada pelas urgências do corpo: o sexo, no intervalo da única história de amor, é secundarizado pela urgência de libertação do feminino, quando a mulher se passa por rapaz para ganhar mobilidade e trânsito no mundo dos homens: ela, no entanto, é encontrada justamente nos espaços da festa das almas, lugar par daqueles frequentados pelos demais buscadores da união divina. O filme também cumpre com outra demanda do Islã diverso, unificando, sob a bandeira da espiritualidade espontânea, a xiitas e sunitas, a árabes, berberes e iranianos. Línguas revezam-se naturalmente; citam-se poemas de Ibn-Arabi, Rumi e Hafiz, ao lado de suras do Alcorão e citações de Hadith; em árabe clássico e popular, em berbere, em pahlevi, em persa. O filme congrega músicos do Paquistão, do Irã, da Síria. E prenuncia os temas da continuidade, da interrupção, da circularidade de que se ocupam os filmes que compõem os “Relatos do Iraque”, presentes na parte II da mostra. Aqui e ali, os filmes vão em busca daquilo que será capaz de vencer as limitações da vida humana e terrena e tornará capaz o renascimento da vida nos territórios áridos, demasiado áridos: seja porque sofreram a ação dos homens, na guerra, seja porque assim é também a natureza, em tempos de paz.

Quando entregamos esses filmes ao público de São Paulo, que nestes dias acudirá às salas de exibição do CineSesc, Galeria Olido, Centro Cultural São Paulo e Esporte Clube Sírio, lembramos inequivocadamente a importância da ação conjunta dos realizadores, apoiadores e patrocinadores que tornou outra vez possível uma nova edição dessa mostra. Especial menção ao incentivo irretocável da Prefeitura de São Paulo, do Sesc-SP (Serviço Social do Comércio de São Paulo) e da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, que têm encampado esse projeto do ICArabe, fazendo-o parte integrante da cena cultural desta cidade; à Casa Árabe de Madri, que nos concede os impressionantes “Relatos do Iraque”. E um agradecimento carinhoso às equipes de produção: jornalistas, tradutores, criadores, designers e o grupo de intelectuais que pensou, selecionou e combinou o elenco de filmes que animam essa vitoriosa 4ª Mostra Mundo Árabe de Cinema.



Michel Sleiman
Presidente do Instituto da Cultura Árabe
Professor de Língua e Literatura Árabe da USP (Universidade de São Paulo)