Tempo de viver, tempo de morrer

Após a estreia do filme Iron Man (Jon Favreau, 2008), Todd McCarthy afirmou à revista Variety que, finalmente, o cinema estadunidense faria dinheiro com um filme sobre a guerra do Iraque. Pura ironia em vista dos contínuos fracassos de Hollywood frente a esse Vietnam moderno. O tema do Iraque acabou transformado em uma espécie de veneno, independentemente da abordagem dada, tal como a bélica apresentada no filme Jarhead (Sam Mendes, 2005), Redacted (Brian de Palma, 2007, talvez o fracasso mais retumbante) e La Batalla de Haditha (Nick Broomfield, 2007). Ou ainda com temática dramática, como La vida sin Grace (James C. Strouse, 2007), ou En el valle de Elah (Paul Haggis, 2007), incluindo ficções políticas como Leões e cordeiros (Robert Redford, 2007). Este último aspecto foi também dominante no campo dos documentários, com vários que questionam a intervenção estadunidense para derrocar Saddam Hussein. A intervenção e seus métodos. Isso já nos falavam alguns filmes em 2004, como Fahrenheit 9/11 (Michael Moore) ou Uncovered (Robert Greenwald)*, que se constituíram no ponto de chegada das reflexões do britânico Adam Curtis na sua polêmica série de documentários (The Power of Nightmares: the rise of the Politics of Fear e The Trap: What happened to our Dream of Freedom). O documentário mais completo sobre a política estadunidense no Iraque é, no entanto, No End in Sight (2007), com o qual Charles Ferguson questiona a legalidade da invasão, as razões para a guerra e as mentiras que a justificaram, para, em seguida, esclarecer minuciosamente todos os erros cometidos pela administração Bush. Alguns feitos deploráveis, como a prisão de Abu Ghraib, geraram uma pequena filmografia, tal como Ghost of Abu Ghraib (Rory Kennedy, 2007) e Standard Operation Procedure (Errol Morris, 2008). A denúncia das vexatórias torturas sofridas pelos presos iraquianos serviu de tema para Taxi to the Dark Side (Alex Gibney, 2007), ganhador do Oscar de melhor documentário.

Cena de Underexposure

Mas não é desse Iraque que queremos falar, um Iraque a partir da perspectiva unicamente estadunidense, um filtro e um olhar que seria mais um “Relatos sobre o Iraque” do que um “Relatos do Iraque”. Outro documentário como The War Tapes (Deborah Scranton, 2006) pelo menos nos situa no Iraque. As imagens filmadas pelos próprios soldados estadunidenses, já que a diretoria cedeu a sua câmera, trazem um retrato do dia a dia das forças invasoras, das suas missões e das armadilhas. São imagens do tipo das vistas em Iraqi Short Films, do argentino Mauro Andrizzi (2008), sobre a estranha vida cotidiana das forças de ocupação, o ponto de vista dos “insurgentes” e o dos soldados. E em meio a isso tudo, o que sobra? Ou, melhor dizendo, o que falta? Nada mais, nada menos do que o povo iraquiano, vítima de uns e de outros. A ele é dedicado esse ciclo.

Alguns filmes são de ficção, outros documentários, mas todos trazem um panorama cronológico que inclui desde os dias anteriores à invasão estadunidense em 2003 até 2007, quando, assim como dizia o título do documentário de Ferguson, não se podia ver nenhum final. As tartarugas podem voar (2004) é uma coprodução entre o Irã e o Iraque, dirigida por um cineasta iraniano de origem curda, Bahman Ghobadi. Nessa zona de fronteira entre o norte do Iraque e o Curdistão, sobrevivem crianças que se comportam como adultos, pois lhes é exigido isso. Estamos em momentos antes da ocupação, já com data marcada, como se se tratasse de um blockbuster hollywoodiano. No campo de refugiados que habitam, o poder está nas mãos dos que têm a informação, que nesse caso se focaliza nas notícias que vêm do exterior e que falam do ataque estadunidense. Notícias que só podem ser obtidas por meio de uma antena parabólica. Assim, o menino que instala essas antenas e que facilita a informação é chamado se Satélite. Essa é a forma de todos se manterem avisados, de saber o que vem em seguida. Por outro lado, a guerra não é algo novo que não se conheça, nem algo que temam. No campo de refugiados, estabeleceu-se uma economia de guerra.

O protagonista de Underexposure (Oday Rasheed, 2005) é um cineasta, Hassan, que filma seus amigos e também uma cidade fantasmagórica que não termina de reconhecer: “Bagdá não é uma cidade. Os homens vivem aqui em uma invenção de sua própria mente. As mulheres são um arco-íris em branco e preto. Bagdá é uma ideia dividida por um rio em duas metades. Nenhuma é realmente Bagdá.” Essa cidade, que não é Bagdá, foi se acostumando aos soldados que patrulham permanentemente suas ruas e aos helicópteros que cercam o céu. Hassan é obrigado a filmá-la com películas velhas, subexpostas. É outra metáfora da vida no Iraque, onde filmar, ou pretender ser cineasta, é, mais que um luxo, quase uma missão quixotesca, como nos mostram os protagonistas do curta-metragem Leaving (Ahmed Kamal, 2007). Por outro lado, um dos poucos cafés para intelectuais de Bagdá é destruído por bombas em A Candle for the Shabandar Café (Emad Ali, 2007). Um terceiro curta-metragem traz no título a memória da destruição: A Stranger in his own Country (Hassanain al Hani, 2007).

O primeiro documentário estadunidense a conceder todo o protagonismo do povo iraquiano é Iraq in Fragments (2006). James Longley retrata um país destruído e dividido, com cada uma das zonas dominada por uma etnia ou facção religiosa diferente: os sunitas na capital; os xiitas em Najaf e no sul do país; e os curdos no norte. Dois meninos e um Imam (líder religioso) xiita protagonizam o documentário, cuja voz do narrador está na ausência. Longley confia no poder das imagens. Seu único comentário é uma música (de sua autoria) que nos remete a um estado de pesar. Não é para menos.

Ahlaam (2006) é o primeiro filme de ficção rodado no Iraque após a queda de Saddam Hussein, dirigido pelo então debutante Mohamed Al-Daradji. Ao voltar ao seu país natal, deparou-se com o caos do pós-guerra e com uma cena que o impactou: a dos inúmeros doentes mentais perambulando pelas ruas da cidade, já que as casas de saúde psiquiátrica haviam sido destruídas durante os bombardeios. Os autores do filme reconheceram a clara inspiração neorrealista e “rosselliniana” ao filmar uma ficção em um cenário com tanta força documental, em que as feridas da guerra ainda sangram. Al-Daradji não filma as ruínas do pós-guerra, mas a própria guerra, que se instalou na vida cotidiana das pessoas de seus protagonistas. Esses são um médico, Mehdi, e dois pacientes, Ali, um antigo soldado, e Ahlaam, uma mulher idealista cujo noivo foi sequestrado no dia do casamento. Volta-se a 1998 para se retomar a biografia individual de cada uma dessas vítimas de um regime e uma situação internacional que os levou à loucura. É uma metáfora de todo um país.

Após a queda de Saddam Hussein, Kasim Abid volta a Bagdá, após 30 anos de exílio. Retorna para reencontrar seus parentes e filmar um diário que remonta aos últimos quatro ou cinco anos de vida familiar. O resultado é um documentário fascinante, Life After the Fall (2008), de duas horas e meia de duração. Algumas vezes são ouvidas as explosões ao longe, em outras vemos como a violência golpeia a intimidade do realizador. A vida após a queda é a história de uma família, mas também de uma cidade, de um país e de uma guerra global. A história oculta, a que acontece nos bastidores, a que não nos mostram os noticiários.

Jaime Pena
Responsável pela programação do Centro Galego de Artes e da Imagem
Membro do Conselho de Redação da Cahiers du Cinema-España

Tradução: Soraya Smaili. Revisão: Soraya Misleh.

*Filme exibido pelo Instituto da Cultura Árabe
na primeira Mostra Mundo Árabe de Cinema (2005)
ocorrida no Centro Cultural São Paulo.